Vinte anos após Columbine: 'Ouçam seus filhos', diz a mãe de um dos atiradores
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Exatas duas décadas depois do massacre que deixou 15 mortos na escola americana, Sue Klebold conta suas reflexões sobre a tragédia
Por Josy Fischberg
20/04/2019 - 06:00 / Atualizado em 20/04/2019 - 14:48
RIO - Há alguns anos, em uma palestra proferida a um público de tamanho considerável, Sue Klebold disse: "Ao entrar em um lugar como este, nunca sei se alguém perdeu um ente querido pelo que meu filho fez. Do fundo do meu coração, peço perdão". Há exatos 20 anos, o filho de Sue, Dylan, e um colega mataram 13 pessoas e feriram outras 24 na escola de ensino médio de Columbine, antes de tirarem as próprias vidas, em um dos mais conhecidos massacres em colégios americanos. Sue lançou um livro em 2016 ("O acerto de contas de uma mãe", Verus Editora) e hoje se dedica a pesquisar questões ligadas a saúde mental e a ajudar famílias de pessoas que se suicidaram.
*O GLOBO: Como a senhora decidiu mostrar seu rosto e falar abertamente sobre seu filho?
SUE KLEBOLD: Foi uma longa jornada até estar suficientemente curada e ter coragem. Passei muitos anos traumatizada, mas eu sabia, desde os momentos iniciais, que deveria escrever um livro. Era professora e, quando tudo aconteceu, definitivamente não estava entendendo nada. E eu me lembro de estar sentada na calçada em frente à minha casa, com vários helicópteros sobrevoando o local (no dia do massacre, quando a polícia bateu à porta da casa da família) e ter pensado: se isso isso realmente está acontecendo com a minha família, vou ter que escrever algo. "Não sei absolutamente nada sobre como é viver essa questão por dentro e acredito que quase ninguém saiba", foi o que me veio à cabeça. Mas foram necessários muitos anos, passei por todos os tipos de problema, fiz muita terapia. Nunca quis aparecer em público. Esse foi o ponto mais difícil. Só que chegou o momento de lançar o livro. Ali eu vi que tinha que encarar. Mas estar na frente das câmeras é sempre muito difícil para mim.
*Quando massacres em escolas acontecem, muitos tendem a apontar logo uma causa: bullying, problemas na família, games, acesso a armas... Existe uma resposta?
Foi exatamente o que aconteceu após Columbine. Todo mundo queria apontar um agente causador, isso faria com que as pessoas voltassem a se sentir seguras. É uma espécie de necessidade básica: a sensação de termos algum controle sobre esse tema. Mas é tudo muito mais complexo. Não existe "a" resposta. E eu sinto muito porque sei que, ao dizer isso, estou decepcionando as pessoas. Trata-se, de fato, de um conjunto complexo de circunstâncias — acesso a armas, o estado de espírito da pessoa, games também desempenham um papel, bullying pode ser desencadeador de depressão... Se tentarmos melhorar essas coisas, talvez cheguemos a algum lugar, mas não é assim tão fácil.
*Em seu livro, a senhora diz que, se tivesse percebido "os pequenos sinais", isso poderia ter feito diferença no caso do seu filho. Que sinais eram?
No caso do Dylan, acredito que ele se envolveu nisso por sua vontade de tirar a própria vida. Pelas suas anotações, sabemos hoje que ele tinha pensamentos suicidas dois anos antes do ataque. Mas só uma parcela bem pequena daqueles que tiram suas próprias vidas é violenta. Sobre suicídio, há sinais que podem indicar algo, ainda que também possam fazer parte do comportamento de um adolescente com vida normal. Por isso, nem sempre é tão claro assim. Pensamentos recorrentes sobre morte, problemas com alimentação e com sono podem ser indícios de depressão. O melhor a fazer é se calar e ouvir o seu filho. Quando conversamos com eles, queremos que se sintam melhor. Quando eles dizem "todos na escola me odeiam", os pais logo respondem "eu te amo" ou "acho você lindo e esperto". Acredito que, nesse momento, deveríamos encorajá-los a falarem mais sobre seus sentimentos. É preciso uma escuta reflexiva — "Fale-me mais sobre como se sente" — e não dizermos ao nossos filhos como eles deveriam se sentir. Adquirir uma arma também pode indicar que a pessoa queira se ferir. Se um jovem demonstra fascinação com tragédias como a de Columbine ou outros massacres e pesquisa muito sobre assuntos assim, isso precisa ser conversado.
*Dylan, como a senhora descreve, era um depressivo suicida. Quando isso, então, pode se transformar em algo violento, que representa um perigo a outras pessoas?
Não acho que tenhamos respostas. Acredito que temos algum tipo de entendimento. Quando há um acontecimento como este, como Columbine, não podemos simplificar. É uma sucessão de vários eventos em cima de uma pessoa que está em crise. A imensa maioria dos suicidas não é violenta, como falei. Isso é muito raro. No caso de Dylan, foram várias coisas que se juntaram. Ele tinha pensamentos suicidas, acesso a armas, um amigo perturbado que era alvo de bullying junto com ele, então ambos tinham muita raiva não expressada. Quando há muitas coisas juntas, é um sinal de alerta. Mas ainda é muito difícil, para mim, entender como uma pessoa criada com amor e valores morais, como Dylan foi, pode fazer algo assim. E aí é que acho que entra a questão da saúde mental, pois com esse problema você perde acesso às suas ferramentas, ao seu senso de julgamento.
*Como a senhora passou a lidar com a sua maternidade depois que tudo aconteceu, tanto pelo fato de ser mãe de Dylan quanto de seu outro filho?
Por muito tempo, achei que alguma coisa dentro de mim estava envenenada. Antes, acreditava ser uma boa mãe, amava meus filhos, nos divertíamos juntos, pensava que eles podiam falar comigo sobre qualquer coisa. Mas, depois, passei a achar que nunca mais poderia tomar conta do filho de ninguém. Nos meus pensamentos, algo em mim teria criado isso em Dylan. Depois de muita terapia e de ouvir pessoas com histórias que envolviam suicídio, consegui passar por isso. Entendi que fui a melhor mãe que sabia ser, mas não tinha todas as ferramentas de que precisava. E a grande peça que me faltava é que eu era incapaz de imaginar que ele poderia ser uma pessoa perigosa. Falo hoje para as pessoas: alguém que você ama muito pode estar em uma luta entre a vida e a morte. Esteja consciente de que você pode fazer algo para salvar essa pessoa.
*Tivemos casos recentes no Brasil de tiroteios em escolas cometidos por estudantes. É uma questão global?
No início, achava que era uma questão americana. Mas, quando escrevi meu livro, vi para quantos idiomas foi traduzido e percebi o interesse de pessoas de tantos lugares. Entendi que era um problema de todos. Nós sabemos que um dos grandes fatores envolvidos na questão do suicídio, por exemplo, é a conexão. Você pode estar fisicamente com a sua família, mas não estar presente de fato. Estamos perdendo as conexões. Acho que, se as redes sociais estão desempenhando um papel de nos isolar, então nós estamos lidando globalmente com isso.
*Por que 20 anos depois Columbine ainda é um massacre tão representativo e que desperta tanta curiosidade em jovens, mesmo os que nem haviam nascido na época?
Há algo na tragédia de Columbine... Desde o início, as pessoas que se sentiam isoladas, que achavam que ninguém ligava para elas, que tinham raiva de suas escolas e do mundo se identificaram com Dylan e Eric (o colega com quem o rapaz cometeu os crimes). Aquilo exercia uma atração sobre elas. Quando tudo aconteceu, um amigo meu que trabalhava em um centro de detenção de jovens, ouviu os rapazes de lá comemorarem quando ouviram a notícia de dois estudantes que entraram na escola atirando. Isso é terrível, mas temos que entender esse pensamento. Mostra o nível de dor e raiva de muitos jovens. Nós não deveríamos ficar surpresos com isso. Eu recebo cartas até hoje de mulheres que se dizem apaixonadas por Dylan. E, como tudo se tornou tão público (as gravações caseiras que eles fizeram, o que escreviam, o que vestiam...), virou uma espécie de fetiche. Temos que estar alertas aos que sentem dor. Uma pesquisa recente nos EUA mostrou que 10% dos jovens de ensino médio no país tinham feito planos de se suicidar no ano passado. Precisamos fazer um trabalho muito melhor para nos conectarmos a esses jovens.
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