Publicado no finado site "Aqui!" em 22 de dezembro de 1999.
A Espada do Fim de um Ciclo — Não é porque é novo que é necessariamente bom.
Dizia-se que o Apocalipse chegaria através da fome, da guerra, da morte e da peste... Acho que as coisas não são bem assim!
A Internet já é algo que circula em nossas veias. Se você está aqui, agora, lendo esse artigo, então não tem a menor dúvida do que estou falando. Mas alguma vez já parou para pensar no que significa essa fabulosa nova tecnologia e quais impactos ela terá sobre a Humanidade dentro de, digamos, uns 30 anos?
A tecnologia em geral vem avançando num ritmo alucinante, mas se prestarmos atenção, a coisa não se dá aos saltos. São pulinhos, vários pulinhos. Podem acontecer diariamente, mas vamos nos acostumando a eles de maneira quase indolor. O que pesa é que, ultimamente, o ritmo das mudanças tem se tornado avassalador, fazendo com que nem tenhamos tempo de analisar com a devida calma os impactos das novidades que estamos vendo surgir e que, certamente, alterarão nosso padrão de vida.
Quando surgiram as cidades modernas, ninguém se perguntou se nossas vidas se distanciariam tanto da Natureza que começaríamos a desenvolver doenças decorrentes do sedentarismo e da falta dos desafios naturais que fomos aparelhados para enfrentar. Quando surgiram os Shoppings, não nos perguntamos se aquela nova modalidade de comércio iria massificar nossos hábitos de consumo e nos forçaria a engolir uma estética geométrica, perfumada e engaiolada de lojas, espaços, ambientes e atendentes.
Quando começou a desaparecer a figura do médico da família, sendo substituída pelas clínicas e pelos planos de saúde, não nos tocamos que a relação humana entre doutor e paciente seria seriamente prejudicada, num distanciamento que eliminaria quase por completo aquela saudável interação de almas que tem efeito tão positivo sobre a saúde do enfermo.
Logo que surgiram os primeiros condomínios fechados, nenhum de nós imaginaria que acabariam se transformando em verdadeiras prisões, com grades, seguranças armados e um clima de tensão, totalmente incompatível com o local que escolheríamos como moradia.
Diante desses exemplos podemos ver claramente a facilidade com que esses novos modelos e hábitos foram se insinuando em nossas vidas, sem que fôssemos motivados a parar um instante para analisá-los e às suas possíveis conseqüências. Esses casos citados não deixam de ser manifestações tecnológicas, ou mudanças de padrões.
Mas uma componente terrivelmente forte e bem disfarçada nas entrelinhas é a tendência quase universal de considerar-se benéfica a priori qualquer novidade tecnológica. Por ocasião de um avanço dessa natureza, sempre nos são mostrados os aspectos mais belos e positivos da questão. Os melhores cenários possíveis, que são os que acabam chegando ao conhecimento da massa, levam à falsa idéia de que nossas vidas se transformarão num mar de rosas após a adoção plena da nova técnica, seja lá ela qual for.
O poder invasivo da tecnologia é perigosíssimo porque é invisível. O indivíduo mediano tem uma visão pessoal do mundo extremamente limitada. As informações que obtém para se situar neste oceano de dados flutuantes costumam provir de fontes viciadas e tendenciosas, geralmente divulgando informações que estejam de acordo com os interesses das veias de poder. No caso dos modernos badulaques eletrônicos de todo tipo, entra em jogo o fascínio antigo do ser humano pelas máquinas. E, nesse ritmo, lá vamos nós, na falsa idéia de que toda nova tecnologia é benéfica a todos ou, pelo menos, de que mal não nos fará.
Entretanto, é importantíssimo que se tenha um olhar crítico e talvez até negativo sobre esses avanços. Se formos aplicar uma abordagem de crítica holística à análise de tudo isso, o mais prudente seria considerarmos qualquer novidade tecnológica como sendo negativa, até provarem o contrário. Vítimas da tecnologia é o que não faltam e elas entraram de gaiatas, porque se tivessem sido avisadas a tempo não se meteriam nessa roubada.
São fumantes, gente que sofreu com radiação, doenças urbanas, acidentes de trânsito, estresse, complicações sociais e de relacionamento, pessoas envenenadas por componentes químicos modernos ou por fluxos eletromagnéticos mais ou menos poderosos que nos circundam por onde quer que andemos, e por aí a lista continua.
Algumas atitudes são recomendáveis ao se analisar uma nova tecnologia. Em primeiro lugar, quando a descrição dos imensos benefícios que os tais avanços podem trazer for apresentada pelo proponente da novidade, é bom ficar com o pé atrás, pois ele só dirá maravilhas da nova coisa. Tecnologia nunca é neutra nem grátis e sempre terá consequências sociais, políticas e ambientais. Só que os efeitos negativos surgem devagar e a memória da massa ignara é, lamentavelmente, curta demais. No entanto, não podemos nos curvar à idéia de que, uma vez instalada uma tecnologia no seio da Humanidade, ela não mais poderá ser abandonada. Pode sim!
Estamos rumando para uma era de mega-tecnologias. Veja-se o computador e a internet, por exemplo. Quais os efeitos deles nos hábitos de vida das pessoas? E o que dizer da poluição eletromagnética dos ambientes? Isso sem mencionarmos os inúmeros problemas de saúde decorrentes do uso dessas ferramentas tão fascinantes nos escritórios, nas fábricas e mesmo nos lares. E quanto ao emprego? Quanta gente foi, é e será mandada embora de seus postos de trabalho em função das sucessivas automatizações e informatizações nos ambientes corporativos?
As mudanças conceituais que são impostas à sociedade diante dessa digitalização generalizada das informações nem sempre estão de acordo com as reais necessidades dessa sociedade. Tem muito interesse em jogo e nós, pequeninos, funcionamos apenas como marionetes nesse teatro sem-graça.
Em paralelo, com o avanço da era digital, acaba-se exercendo um controle muito mais minucioso sobre a vida e os assuntos particulares do cidadão comum. Junte-se a isso o incontrolável aumento da velocidade com que somos obrigados a engolir e digerir informações no meio dessa torrente a que estamos submetidos. Os exemplos não param. Se por um lado temos às vezes uma centralização inflexível no processamento dos dados que comandam nossas vidas, ao mesmo tempo temos por vezes o armazenamento e tratamento totalmente distribuídos, com respeito às informações vitais à nossa sobrevivência.
As máquinas comandam hoje em dia até o que não gostaríamos que elas comandassem, como por exemplo as fábricas de alimentos, os sistemas de fornecimento de energia e água, e os sistemas de guerra nuclear que ainda restam no planeta. É claro que, no caso das ogivas, sempre tem um responsável para apertar o botão final, mas o teatro tecnológico que o cerca é o que dará a ele, no final das contas, as informações que o levarão a decidir se irá ou não botar tudo pelos ares, quando o míssil chegar ao seu destino.
Um outro exemplo marcante é o da televisão, que faz com que multidões inteiras vivam suas vidas quase dentro do mundo criado por este meio de comunicação de massa. Liberdade de expressão é para os poderosos. O Zé Povinho fica mesmo sentado diante da tela engolindo tudo aquilo, sem ter outra opção. É a tecnologia da passividade, com todos seus efeitos deletérios, como por exemplo a hiperatividade, ou seja, a aceleração desmesurada do sistema nervoso.
A percepção das "vítimas" é totalmente confusa. A própria política implícita nessa entrega desordenada de fatos pela tela é baseada numa realidade confusa, sem lastro nem bases sólidas que possam sustentar uma consciência humana aceitável nas mentes dos pobres espectadores. Hoje, nos EUA e mesmo aqui no Brasil, elege-se um Presidente da República pela TV. Quem souber se vender melhor, mesmo que esteja mentindo descaradamente, acaba se elegendo. Nós já vimos esse filme.
Poderíamos enumerar dezenas de outros exemplos em detalhe, como as experiências de levar tecnologias novas a comunidades que sempre viveram sem elas e os estudos sobre os efeitos das grandes corporações e multinacionais sobre o cidadão local comum. Teremos no futuro, se ele chegar mesmo, colônias espaciais e em outros planetas. Teremos surpreendentes avanços na genética e na informática. O ritmo de aparecimento dessas novidades proporciona chances de darmos vazão ao melhor de nós, mas ao mesmo tempo também fazem aflorar o nosso lado mais negativo.
Dizia-se que o Apocalipse chegaria através da guerra, da peste e da fome. Outros pregam que uma catástrofe repentina varrerá a Humanidade da face da Terra. Mas será que a esperada "limpeza" do gênero humano se dará de forma tão abrupta assim?
Analisemos por um instante as drogas, só para ilustrar nosso ponto. Poderiam servir para abrir canais de comunicação com nossos "sistemas operacionais" mais internos e ocultos. Mas seu uso foi desviado para o vício e para o lucro astronômico dos tubarões, de modo que o que observamos atualmente é este uso indiscriminado de estupefacientes, com todos os desdobramentos cruéis que tão bem conhecemos.
O poder econômico por trás desses grandes movimentos mundiais, seja no narcotráfico, seja no âmbito das grandes corporações tecnológicas, é algo que escapa completamente ao poder de estimativa do ser humano comum, centrado em atender às suas pequenas necessidades pessoais do dia-a-dia.
No entanto, há quem acredite que os armamentos, os cartéis, as drogas, a intensificação do consumismo, a ânsia pelo "ter" e a escalada incessante da adoção das novas e revolucionárias tecnologias que pipocam a cada dia nos laboratórios -- tudo isso seria uma forma de efetuar a tal "limpeza", mas numa cadência menos traumática e mais amena, pois as causas e efeitos estariam sendo piedosamente diluídos ao longo do tempo.
Se alguém dissesse para nossos avós, na juventude deles, que no futuro as crianças brincariam em parques cercados de grades, comeriam e beberiam preparados químicos, ficariam horas por dia tendo seus cérebros programados e lavados diante de uma tela luminosa hipnótica, ou passariam tardes inteiras manipulando um teclado ligado a uma caixa metálica para brincar de joguinhos em que atirariam e virtualmente matariam centenas de oponentes e monstros de toda espécie, certamente nossos avós não acreditariam em nada disso. E nos chamariam de loucos.
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Recuperado graças à "Wayback Machine", que está aceitando doações.
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